Pegamos o último vôo da ponte aérea Rio-São Paulo naquele dia, um sábado depois do feriadão do dia do trabalho.
O avião até que estava bem cheio para um sábado como aquele. Na parte da frente da aeronave, um Boeing 737-800 da Gol, um grupo bem grande de estudantes fazia um pouco de algazarra.
Como fomos quase os últimos a embarcar, quando chegamos lá no final do avião, todos os outros passageiros já estavam acomodados em suas poltronas. Exatamente na nossa frente, separados pelo corredor, estava um senhor de seus quase sessenta anos e uma senhora pouco mais nova. Pouco depois vim saber que o homem era um catedrático de uma Universidade católica.
Sentamo-nos e nos acomodamos enquanto os dois conversavam num tom razoavelmente alto. Não era um monólogo, mas a senhora ouvia muito mais do que falava. Além disso, quase não conseguíamos ouvi-la porque ela falava num tom muito baixo. Ele, por outro lado, falava alto e gesticulava bastante.
Obviamente não dei atenção à conversa dos dois, mas como ele falava muito alto, era difícil não ouvir. Além disso, depois de um certo tempo, ele começou a sentar a lenha na Igreja, nos padres e em membros da universidade católica. Comecei a prestar atenção no que ele dizia. O sujeito era incansável, falava, falava, falava e não parava de malhar os padres e católicos que ele conhecia.
Quando o avião levantou vôo e liberaram o uso de aparelhos eletrônicos, resolvi parar de ouvir a conversa ácida dos dois e ligar meu tocador de vídeo para ver um filme sobre os gols mais bonitos do mundo.
Coloquei meus fones de ouvido e me desliguei da conversa do catedrático (como ele mesmo havia se intitulado) e sua ouvinte para assistir aos gols. Minha esposa já estava lendo seu livro desde que levantamos vôo em Congonhas.
Quando estávamos chegando ao Rio de Janeiro pediram, como sempre, para que todos desligassem os aparelhos eletrônicos, porque iriam iniciar o procedimento de pouso. Obedeci e voltei a poder ouvir o que falavam ao meu redor, mas nem prestei atenção na conversa dos dois. Comecei a conversar com minha esposa sobre o congresso que ela havia participado naquele dia.
O procedimento de pouso ia muito bem, quando, de repente, o piloto resolveu arremeter a aeronave e abortar o pouso. Levantamos bruscamente sem nenhuma explicação. Naquele momento, houve um grande silêncio no avião. Até a algazarra lá da frente parou.
Olhei para o catedrático (não conseguia ver sua interlocutora) e ele estava de mãos juntas! Logo em seguida o vi voltando-se para a senhora e dizendo para ela: "Agora é rezar! Falamos mal de tanta gente..." e voltou a juntar as mãos e fechar os olhos numa prece profunda.
Comecei a rir por dentro! Estava quase gargalhando! Nesse instante o piloto tomou o som da cabine e informou que havia um forte vento lateral naquela cabeceira e que precisaríamos pousar no outro sentido da pista.
Daí por diante passei a observar a paisagem pela janela do meu lado. Fizemos um belíssimo passeio noturno pela Cidade Maravilhosa e, cinco minutos depois, pousamos tranquila e suavemente na outra cabeceira da pista do Aeroporto Santos Dumont. Todos aplaudiram o piloto.
E o catedrático? Esse, além de ter perdido a vista lindíssima dos cartões postais do Rio de Janeiro à noite, deve ter tido muito trabalho para limpar as calças depois.
sábado, 9 de maio de 2009
terça-feira, 28 de outubro de 2008
Um garoto
Era uma vez um garoto muito sem graça que vivia chateando os seus irmãos.
Esse garoto tinha 9 anos assim que ele completou o seu nono aniversário.
Ele não jogava bola.
Ele detestava a escola.
Ele passeava intensamente pelos seus pensamentos.
Um dia esse garoto resolveu mudar de vida. Comportamento exemplar. Todas as lições em dia. Simpático. Divertido. Elegante. Modesto. Forte para enfrentar o pior inimigo. Fraco para aceitar qualquer provocação.
Sua vida mudou de tal modo que já não era mais reconhecido, nem mesmo pelos de sua casa.
Teve que mudar de cidade.
Teve que mudar de profissão.
Teve que mudar de partido.
Teve que mudar de namorada.
Teve que mudar de carro.
Mas uma coisa ele nunca mudou! E isso foi um segredo que nunca contou para ninguém, a não ser para K.J., seu melhor amigo.
O problema é que ele também mudou de melhor amigo... E K.J. revelou o seu segredo.
Então o garoto virou inimigo mortal de K.J.
Sua vida mudou novamente.
Virou agressivo. Chato. Soberbo. Largado. Fraco para suportar a menor provocação. Forte para abater quem lhe fizesse oposição.
Vida dura. Sempre com o olhar para os lados. Poderia sofer um ataque a qualquer momento.
Vendo que isso não levava a nada, resolveu mudar de vida...
Abriu uma loja no Rio de Janeiro. Sempre sorridente. Sempre simpático. Sempre jovial (apesar dos seus 89 anos). Sempre alegre. Sempre prestativo.
Um dia foi receber uma cliente que lhe pedia dois sacos de arroz. Ele prontamente falou:
- Feliz aniversário!
- Como o senhor sabe que hoje é o meu aniversário?
- Eu simplesmente sei... Também não é todo dia que se faz 30 anos...
- É... Muito obrigada.
A vida do nosso garoto foi marcada por muitas mudanças. Mas uma coisa nunca mudou: Ele sabia felicitar as pessoas que faziam 30 anos!
Esse garoto tinha 9 anos assim que ele completou o seu nono aniversário.
Ele não jogava bola.
Ele detestava a escola.
Ele passeava intensamente pelos seus pensamentos.
Um dia esse garoto resolveu mudar de vida. Comportamento exemplar. Todas as lições em dia. Simpático. Divertido. Elegante. Modesto. Forte para enfrentar o pior inimigo. Fraco para aceitar qualquer provocação.
Sua vida mudou de tal modo que já não era mais reconhecido, nem mesmo pelos de sua casa.
Teve que mudar de cidade.
Teve que mudar de profissão.
Teve que mudar de partido.
Teve que mudar de namorada.
Teve que mudar de carro.
Mas uma coisa ele nunca mudou! E isso foi um segredo que nunca contou para ninguém, a não ser para K.J., seu melhor amigo.
O problema é que ele também mudou de melhor amigo... E K.J. revelou o seu segredo.
Então o garoto virou inimigo mortal de K.J.
Sua vida mudou novamente.
Virou agressivo. Chato. Soberbo. Largado. Fraco para suportar a menor provocação. Forte para abater quem lhe fizesse oposição.
Vida dura. Sempre com o olhar para os lados. Poderia sofer um ataque a qualquer momento.
Vendo que isso não levava a nada, resolveu mudar de vida...
Abriu uma loja no Rio de Janeiro. Sempre sorridente. Sempre simpático. Sempre jovial (apesar dos seus 89 anos). Sempre alegre. Sempre prestativo.
Um dia foi receber uma cliente que lhe pedia dois sacos de arroz. Ele prontamente falou:
- Feliz aniversário!
- Como o senhor sabe que hoje é o meu aniversário?
- Eu simplesmente sei... Também não é todo dia que se faz 30 anos...
- É... Muito obrigada.
A vida do nosso garoto foi marcada por muitas mudanças. Mas uma coisa nunca mudou: Ele sabia felicitar as pessoas que faziam 30 anos!
sábado, 6 de setembro de 2008
Marco, o gato do Polo
Gente, o relato a seguir é uma histórica verídica, ocorrida no dia 3 de maio de 2007. Na hora, foi uma experiência muito angustiante. Mas depois dei muitas risadas e fiquei muito satisfeita com o final feliz. Vejam só se uma coisa dessas pode acontecer com uma gateira??
O relógio tocou às 7h45min. Apertei o soneca e apaguei. Às 7h50min acordei com um ressalto, corri para o banho, porque antes de ir para o trabalho, deveria deixar o meu marido no médico. Ele também se aprontou rápido. Na hora de sairmos, o telefone do meu marido tocou. Eu resolvi pegar um táxi (acho que era um sinal) e deixar o carro com ele. Mas, ele pediu para eu ir de carro, que ele iria de táxi. Tudo bem.
Desci para a garagem, dei partida no carro. Acabou que meu marido conseguiu descer a tempo e pegou uma carona comigo. Ele entrou e, então, saímos. Ao passar pelo portão do prédio ouvimos um “miau” bem perto do carro.
Nossa gata tinha ficado em casa, cinco andares acima da garagem. Só poderia ser coisa da imaginação. Mas, o miado se repetiu... Só poderia ser o volante, que às vezes faz uns barulhinhos agudos, mas que costumam ser bastante baixos e discretos.
Andamos mais alguns metros e o miado ficava mais alto. Só poderia ser... um gato! Mas onde ele estaria???
Paramos na calçada mais próxima, abrimos as portas do carro, o capô, a mala e tudo mais que possuísse portas e dobradiças, esperando encontrar o bichano. Nenhum rastro. Voltamos a pensar que era o barulho do volante. Afinal, era impossível ser um gato.
Partimos novamente e o “miau” recomeçou, como se fosse um pedido de “Socorro, alguém me tira daqui!”
A partir daí, o que estávamos achando engraçado começou a assumir um tom dramático. Como eu poderia continuar com o carro ligado e em movimento com um gatinho indefeso, prestes a estourar seus miolos em alguma engrenagem do motor??? Ou em pensar que ele poderia cair do carro e ser atropelado por mim ou por qualquer outro automóvel??? Ao mesmo tempo, já estávamos atrasados. Eu para o trabalho, meu marido para o médico, o que era grave.
Paramos novamente na rua. Nesse momento, meu pranto já havia começado. Meu marido, irritadíssimo com a situação (ele odeia gatos e odeia me ver chorar por eles), brigou comigo e revistou todo o carro novamente. É claro que não havia gato algum!
Já aceitando chegar mais tarde ao trabalho e ao médico, resolvemos esclarecer o enigma. Paramos em uma loja de pneus próxima e explicamos o que estava acontecendo. Os funcionários nos olharam como uma cara de quem diz: “Estão doidos”. Eu estava com os olhos vermelhos de tanto chorar, e isso deve ter contribuído para eles nos acharem ainda mais insanos.
O carro foi levantado por macacos hidráulicos. Revistamos todo ele por baixo. Enfiamos um ferro em cada buraquinho, batemos na lataria. Não havia espaço para um gato estar em nenhum lugar. Não havia nenhum barulho. Saímos de lá. Eu, particularmente, estava desolada. Como não tínhamos dinheiro trocado, então demos dez pratas pro funcionário, que sorriu de orelha a orelha. Mas, com certeza, continuou achando que nós havíamos bebido ou cheirado alguma erva.
Entramos no carro, e o sofrimento continuou. Mal saímos da loja, o bicho recomeçou a seqüência de miados. Novamente, entrei num pranto, pensando: "Por que isso tinha que acontecer logo comigo, que amo gatos? Por que logo hoje, que estamos atrasados? Por que esse bicho resolveu entrar aqui? Como ele fez isso? Onde ele pode estar?"
Meu marido, já atrasado para o médico, sugeriu que parássemos na garagem do meu pai, que sempre tem boas idéias pra problemas difíceis como esse. Chegando lá, liguei para o meu pai do celular. Expliquei o que estava acontecendo e ele, obviamente, não entendeu nada, pois a história não era nada lógica. Ele desceu para a garagem e, mais uma vez, explicamos o drama com riqueza de detalhes.
Com uma lanterna, ele revistou cada buraquinho do carro. No capô, na mala, embaixo... É claro que ele não acreditou na gente. Não havia como ter um gato dentro do carro, só na nossa imaginação. Os miados pararam, o que contribuía para todos acharem que eu havia enlouquecido.
Até que eu resolvi tomar coragem para ligar o carro. Sempre imaginando, claro, aquela cena do gato com miolos estourados e pelos voando e grudados por todos os lados.
Ufa! Respirei fundo, pisei no acelerador e esperei alguns segundos. Tendo meu pai como testemunha, um miado ecoou bem alto: "Miauuuu!" (tradução: “Socoooorro!!”). Então, meu pai, nitidamente, mudou sua fisionomia. De descrença, para a perplexidade. Realmente havia um gato dentro do carro!
Por outro lado, ele deve ter ficado aliviado, pensando que a filhinha querida estava sã.
As buscas pelo sobrevivente recomeçaram com ainda maior empenho. Os porteiros vieram para ver o que acontecia na garagem. Mas olhavam meio de lado pro negócio, porque obviamente também estavam descrentes de que havia um gato ali dentro daquele carro.
De repente, me bateu uma idéia. Meus pais também têm uma gata! Eu poderia pegar a ração dela e colocar um pouco em um buraco próximo ao pára-choque. Quem sabe ele não sairia do esconderijo atraído pelos prazeres da gula?
Subi ao apartamento do meu pai. A empregada atendeu a porta e eu entrei como uma flecha em direção ao quarto de empregada, à procura de comida de gato. Passei pela cozinha rápido, minha mãe quase se engasgou com o pão, porque pensou que algo realmente grave tinha acontecido. Saiu atrás de mim perguntando o que eu queria, e eu disse que eu queria comida de gato. Comida de gato??? Mas, para quê??? Perguntou ela. E eu, prontamente, respondi: pro gato que está preso dentro do carro!
Pronto, pânico! Minha mãe achou que eu tinha pirado de vez. Meu pai tinha descido sem avisar nada a ela. Ou seja, ela não sabia da missa a metade Aí, eu tive que contar a história. Acho que foi a primeira a acreditar no drama. Afinal, mãe é mãe.
Coloquei a comida dentro do pára-choque e ficamos aguardando pra ver se o gato morderia a isca. Ficamos todos assistindo em silêncio, mas, nada de ele aparecer.
Já muito atrasada para o trabalho, resolvi estacionar o carro e deixa-lo lá até que meu marido retornasse do médico. Quem sabe se o gato não sairia se o deixássemos um pouco em paz?
Completamente arrasada, segui para o trabalho. O que seria daquele gatinho? E se ele morresse lá dentro? Tínhamos que tira-lo de lá de dentro de qualquer jeito. Preferencialmente vivo. E se morresse também teríamos que remover o cadáver, afinal ninguém ia agüentar ficar com um bicho morto no capô do carro. Que situação desagradável.
Neste meio tempo, meu marido chegou do médico para pegar o carro na garagem dos meus pais. E, mais uma vez, as buscas recomeçaram. A platéia tinha aumentado. Tinha até um vizinho assistindo, também achando que era a maior lorota a existência de um gato dentro do capô carro. Os porteiros vieram ajudar. Arrumaram uma mangueira para jogar água nos buraquinhos e compartimentos mais escondidos. Certamente, o gato sairia correndo de onde estivesse quando sentisse o primeiro respingo d’água. Mas, claro, nada aconteceu.
Pra divertir os espectadores, o coitado do porteiro, que colocou a mão dentro do pára-choque, ainda quase morreu do coração, quando meu marido resolveu apertar a buzina para lhe dar um susto e dar uma descontraída no clima. Particularmente, acho que ele arranjou um inimigo a partir deste o momento. O cara, que já estava com medo de ser arranhado pelo gato, deu um pulo pra trás, quase teve um treco. Nisso, todos tiveram um ataque de risos. Menos o porteiro, e o gato, é claro, que além de preso, devia estar todo molhado e ainda apavorado com o barulho da buzina.
A cartada final então foi dada. Meu marido resolveu levar o carro ao mecânico. O gato foi de carona até lá, miando, é claro.
Como não é de se estranhar, o mecânico também não acreditou na história. Mas, pra não perder o cliente, aceitou fazer uma investigação mais profunda do problema. Desmontou a parte da frente do carro, e, de repente, quem aparece???? O gato!! Ele realmente existia. Tinha pelos, patas, focinho, bigodes e rabo! Estava estrategicamente escondido em um compartimento praticamente fechado em cima da roda dianteira, do lado esquerdo. Provavelmente entrou ali durante a noite para se esquentar, porque o tempo estava meio fresco no dia anterior. Certamente, nunca sairia mais dali vivo, se não fosse o mecânico ou se o próprio gato não fosse um bom contorcionista.
A vítima era preta, aparentava ser um filhote e devia medir uns 20 cm. Imediatamente pulou para cima do motor. Em completo estado de pânico, é claro, afinal uma experiência como esta é muito radical para um recém-nascido. Uma mulher o pegou no colo, mas ele, assustado, saiu para a rua, correndo.... Para a liberdade, com uma vida a menos e muitos traumas acumulados.
Certos dias, a gente se pergunta: Por que mesmo eu me levantei da cama? Se fosse supersticiosa, ia dizer que a confusão toda foi sinal de azar, afinal, o bichano era preto....
Enfim, não posso dizer que foi um dia de cão, em respeito ao pobre do gato. Mas, certamente, ficará marcado em nossa lembrança como uma experiência ímpar, e, espero eu, que única também.
O relógio tocou às 7h45min. Apertei o soneca e apaguei. Às 7h50min acordei com um ressalto, corri para o banho, porque antes de ir para o trabalho, deveria deixar o meu marido no médico. Ele também se aprontou rápido. Na hora de sairmos, o telefone do meu marido tocou. Eu resolvi pegar um táxi (acho que era um sinal) e deixar o carro com ele. Mas, ele pediu para eu ir de carro, que ele iria de táxi. Tudo bem.
Desci para a garagem, dei partida no carro. Acabou que meu marido conseguiu descer a tempo e pegou uma carona comigo. Ele entrou e, então, saímos. Ao passar pelo portão do prédio ouvimos um “miau” bem perto do carro.
Nossa gata tinha ficado em casa, cinco andares acima da garagem. Só poderia ser coisa da imaginação. Mas, o miado se repetiu... Só poderia ser o volante, que às vezes faz uns barulhinhos agudos, mas que costumam ser bastante baixos e discretos.
Andamos mais alguns metros e o miado ficava mais alto. Só poderia ser... um gato! Mas onde ele estaria???
Paramos na calçada mais próxima, abrimos as portas do carro, o capô, a mala e tudo mais que possuísse portas e dobradiças, esperando encontrar o bichano. Nenhum rastro. Voltamos a pensar que era o barulho do volante. Afinal, era impossível ser um gato.
Partimos novamente e o “miau” recomeçou, como se fosse um pedido de “Socorro, alguém me tira daqui!”
A partir daí, o que estávamos achando engraçado começou a assumir um tom dramático. Como eu poderia continuar com o carro ligado e em movimento com um gatinho indefeso, prestes a estourar seus miolos em alguma engrenagem do motor??? Ou em pensar que ele poderia cair do carro e ser atropelado por mim ou por qualquer outro automóvel??? Ao mesmo tempo, já estávamos atrasados. Eu para o trabalho, meu marido para o médico, o que era grave.
Paramos novamente na rua. Nesse momento, meu pranto já havia começado. Meu marido, irritadíssimo com a situação (ele odeia gatos e odeia me ver chorar por eles), brigou comigo e revistou todo o carro novamente. É claro que não havia gato algum!
Já aceitando chegar mais tarde ao trabalho e ao médico, resolvemos esclarecer o enigma. Paramos em uma loja de pneus próxima e explicamos o que estava acontecendo. Os funcionários nos olharam como uma cara de quem diz: “Estão doidos”. Eu estava com os olhos vermelhos de tanto chorar, e isso deve ter contribuído para eles nos acharem ainda mais insanos.
O carro foi levantado por macacos hidráulicos. Revistamos todo ele por baixo. Enfiamos um ferro em cada buraquinho, batemos na lataria. Não havia espaço para um gato estar em nenhum lugar. Não havia nenhum barulho. Saímos de lá. Eu, particularmente, estava desolada. Como não tínhamos dinheiro trocado, então demos dez pratas pro funcionário, que sorriu de orelha a orelha. Mas, com certeza, continuou achando que nós havíamos bebido ou cheirado alguma erva.
Entramos no carro, e o sofrimento continuou. Mal saímos da loja, o bicho recomeçou a seqüência de miados. Novamente, entrei num pranto, pensando: "Por que isso tinha que acontecer logo comigo, que amo gatos? Por que logo hoje, que estamos atrasados? Por que esse bicho resolveu entrar aqui? Como ele fez isso? Onde ele pode estar?"
Meu marido, já atrasado para o médico, sugeriu que parássemos na garagem do meu pai, que sempre tem boas idéias pra problemas difíceis como esse. Chegando lá, liguei para o meu pai do celular. Expliquei o que estava acontecendo e ele, obviamente, não entendeu nada, pois a história não era nada lógica. Ele desceu para a garagem e, mais uma vez, explicamos o drama com riqueza de detalhes.
Com uma lanterna, ele revistou cada buraquinho do carro. No capô, na mala, embaixo... É claro que ele não acreditou na gente. Não havia como ter um gato dentro do carro, só na nossa imaginação. Os miados pararam, o que contribuía para todos acharem que eu havia enlouquecido.
Até que eu resolvi tomar coragem para ligar o carro. Sempre imaginando, claro, aquela cena do gato com miolos estourados e pelos voando e grudados por todos os lados.
Ufa! Respirei fundo, pisei no acelerador e esperei alguns segundos. Tendo meu pai como testemunha, um miado ecoou bem alto: "Miauuuu!" (tradução: “Socoooorro!!”). Então, meu pai, nitidamente, mudou sua fisionomia. De descrença, para a perplexidade. Realmente havia um gato dentro do carro!
Por outro lado, ele deve ter ficado aliviado, pensando que a filhinha querida estava sã.
As buscas pelo sobrevivente recomeçaram com ainda maior empenho. Os porteiros vieram para ver o que acontecia na garagem. Mas olhavam meio de lado pro negócio, porque obviamente também estavam descrentes de que havia um gato ali dentro daquele carro.
De repente, me bateu uma idéia. Meus pais também têm uma gata! Eu poderia pegar a ração dela e colocar um pouco em um buraco próximo ao pára-choque. Quem sabe ele não sairia do esconderijo atraído pelos prazeres da gula?
Subi ao apartamento do meu pai. A empregada atendeu a porta e eu entrei como uma flecha em direção ao quarto de empregada, à procura de comida de gato. Passei pela cozinha rápido, minha mãe quase se engasgou com o pão, porque pensou que algo realmente grave tinha acontecido. Saiu atrás de mim perguntando o que eu queria, e eu disse que eu queria comida de gato. Comida de gato??? Mas, para quê??? Perguntou ela. E eu, prontamente, respondi: pro gato que está preso dentro do carro!
Pronto, pânico! Minha mãe achou que eu tinha pirado de vez. Meu pai tinha descido sem avisar nada a ela. Ou seja, ela não sabia da missa a metade Aí, eu tive que contar a história. Acho que foi a primeira a acreditar no drama. Afinal, mãe é mãe.
Coloquei a comida dentro do pára-choque e ficamos aguardando pra ver se o gato morderia a isca. Ficamos todos assistindo em silêncio, mas, nada de ele aparecer.
Já muito atrasada para o trabalho, resolvi estacionar o carro e deixa-lo lá até que meu marido retornasse do médico. Quem sabe se o gato não sairia se o deixássemos um pouco em paz?
Completamente arrasada, segui para o trabalho. O que seria daquele gatinho? E se ele morresse lá dentro? Tínhamos que tira-lo de lá de dentro de qualquer jeito. Preferencialmente vivo. E se morresse também teríamos que remover o cadáver, afinal ninguém ia agüentar ficar com um bicho morto no capô do carro. Que situação desagradável.
Neste meio tempo, meu marido chegou do médico para pegar o carro na garagem dos meus pais. E, mais uma vez, as buscas recomeçaram. A platéia tinha aumentado. Tinha até um vizinho assistindo, também achando que era a maior lorota a existência de um gato dentro do capô carro. Os porteiros vieram ajudar. Arrumaram uma mangueira para jogar água nos buraquinhos e compartimentos mais escondidos. Certamente, o gato sairia correndo de onde estivesse quando sentisse o primeiro respingo d’água. Mas, claro, nada aconteceu.
Pra divertir os espectadores, o coitado do porteiro, que colocou a mão dentro do pára-choque, ainda quase morreu do coração, quando meu marido resolveu apertar a buzina para lhe dar um susto e dar uma descontraída no clima. Particularmente, acho que ele arranjou um inimigo a partir deste o momento. O cara, que já estava com medo de ser arranhado pelo gato, deu um pulo pra trás, quase teve um treco. Nisso, todos tiveram um ataque de risos. Menos o porteiro, e o gato, é claro, que além de preso, devia estar todo molhado e ainda apavorado com o barulho da buzina.
A cartada final então foi dada. Meu marido resolveu levar o carro ao mecânico. O gato foi de carona até lá, miando, é claro.
Como não é de se estranhar, o mecânico também não acreditou na história. Mas, pra não perder o cliente, aceitou fazer uma investigação mais profunda do problema. Desmontou a parte da frente do carro, e, de repente, quem aparece???? O gato!! Ele realmente existia. Tinha pelos, patas, focinho, bigodes e rabo! Estava estrategicamente escondido em um compartimento praticamente fechado em cima da roda dianteira, do lado esquerdo. Provavelmente entrou ali durante a noite para se esquentar, porque o tempo estava meio fresco no dia anterior. Certamente, nunca sairia mais dali vivo, se não fosse o mecânico ou se o próprio gato não fosse um bom contorcionista.
A vítima era preta, aparentava ser um filhote e devia medir uns 20 cm. Imediatamente pulou para cima do motor. Em completo estado de pânico, é claro, afinal uma experiência como esta é muito radical para um recém-nascido. Uma mulher o pegou no colo, mas ele, assustado, saiu para a rua, correndo.... Para a liberdade, com uma vida a menos e muitos traumas acumulados.
Certos dias, a gente se pergunta: Por que mesmo eu me levantei da cama? Se fosse supersticiosa, ia dizer que a confusão toda foi sinal de azar, afinal, o bichano era preto....
Enfim, não posso dizer que foi um dia de cão, em respeito ao pobre do gato. Mas, certamente, ficará marcado em nossa lembrança como uma experiência ímpar, e, espero eu, que única também.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
A Lucas o que é de César
Por José Antonio Oliveira
Fabiana não sabia o que fazer com o envelope que estava em suas mãos. Olhou mais uma vez o resultado do exame, ainda lacrado.
Antes de abrir, lembrou-se outra vez da cara que o namorado havia feito quando descobriu que ela estava grávida. Ele parecia estar vendo um fantasma. Ficou tão chocado com a novidade, que se despediu às pressas e nunca mais atendeu nem um telefonema. O maldito, pensava, tinha o tal “bina” no celular.
Uma vez, ligou de um orelhão para ele, e, quando ele reparou que era ela quem estava do outro lado da linha, desligou o celular e mandou a operadora trocar seu número. Foi a maior decepção da sua vida ter confiado tanto num homem e ele fazer esse papel de moleque.
Depois de afastar as lembranças do namorado, Fabiana resolveu abrir o envelope, para ficar mais calma. Com certeza, tudo devia estar bem com o pequeno bebê, que já estava com 18 semanas.
Sem muita pressa, abriu o envelope e foi direto ao ponto do laudo que interessava.
Naquele instante, era ela que parecia estar vendo um fantasma. Um não, uma legião tenebrosa de fantasmas assustadores trazendo consigo as palavras “feto anencéfalo”.
Ficou repetindo consigo, em estado de choque: “feto anencéfalo”, “feto anencéfalo”, “feto anencéfalo”... E desabou num pranto.
Não era possível! Devia haver um erro! Havia de estar errado! O neném tinha que ser lindo, gorducho, rosado, alegre, saudável, feliz... Não anencéfalo!
Correu até o banheiro, abriu o armário, pegou o calmante fitoterápico e tomou uns comprimidos. Sua sorte era ser bastante sensível ao maracujá. Em meia hora já estava calma novamente. Muito triste, mas calma.
Pegou o telefone e discou para o consultório do médico.
– Consultório do Dr. Queiroz...
– Por favor, aqui é Fabiana Silva, gostaria de saber se o Dr. Queiroz pode me atender hoje.
– Hoje? Ele só tem agora consulta para fevereiro do ano que vem.
– Fevereiro? Mas ainda estamos em dezembro!
– Isso mesmo, fevereiro. Você quer marcar?
– Olha só, minha querida, isso é uma emergência! Eu preciso falar com ele hoje, nem que seja num encaixe de dez minutos entre duas consultas!
– Humpf (detesto quando me chamam de “minha querida”)... Vou falar com ele assim que terminar essa consulta. Me dê seu telefone.
– O telefone é 28... Ah, e tem também o celular, 82...
Passaram-se 20 minutos – os mais longos de sua vida – e, felizmente, a secretária telefonou dizendo que ela poderia ser atendida em duas horas.
Fabiana não esperou nem um minuto, partiu para o ponto de ônibus para esperar as duas horas lá no consultório do Dr. Queiroz.
Foi sua sorte. O trânsito estava terrível desde o túnel Santa Bárbara até a rua Pinheiro Machado. Havia um caminhão enguiçado bem em frente ao Palácio Guanabara. O tráfego estava em meia pista. Se tivesse se demorado mais um pouco em casa, não iria chegar a tempo no consultório, que ficava na Voluntários da Pátria.
Chegou ofegante ao consultório e entregou a carteirinha do plano de saúde para a secretária, que ainda estava de mau humor.
Nem teve tempo de sentar e abrir uma revista e o Dr. Queiroz já estava saindo de seu consultório. Ele disse para que o aguardasse lá dentro enquanto ia buscar um FAX na recepção.
– Como está, Fabiana? – Perguntou o Dr. Queiroz, ao voltar para a sala. – Fez os exames que eu pedi?
– Pois é doutor, fiz e já tenho os resultados, gostaria que o senhor lesse, por favor.
O médico leu tudo sem esboçar nenhuma emoção. Só os olhos se mexiam no seu rosto. Nem uma expressão de susto, de tristeza, de surpresa... de nada!
Depois de terminar, ele deixou os papéis em cima da mesa, encostou-se na cadeira e deixou escapar um longo e sonoro suspiro.
Ele sabia que ela tinha cultura suficiente para entender o que estava escrito no laudo e foi diretamente ao assunto.
– Fabiana, você pode fazer outro exame, mas o que eu estou vendo aqui não deixa nenhuma sombra de dúvida que seu bebê é anencéfalo. Lamento.
– É, eu sei...
– Infelizmente, não há o que fazer para que essa criança consiga sobreviver, mas também não é possível precisar quanto tempo ela ficará viva depois de nascer.
– Eu posso interromper a gravidez?
– Abortar? Não aconselho.
– Não, não quero abortar, queria, “tipo”... fazer um parto para antecipar o nascimento.
– Sim, o que você quer é abortar.
– Não, já disse que não quero abortar... Ou melhor, quero abortar sim, afinal é o meu corpo, eu tenho que ter direito de decidir se eu quero ou não carregar uma criança morta na minha barriga. A minha cabeça já está entrando em parafuso por causa desse assunto.
– Veja bem, Fabiana, ele não está morto ainda. Se nós o tirarmos daí hoje, aí sim ele vai morrer instantaneamente. Ele pode até não ter atividade cerebral, mas vai sobreviver um tempo, apesar de pequeno, depois que nascer. Pense que você o está servindo para ele viva esses poucos meses no seu ventre.
– Mas qual é a diferença de morrer hoje ou morrer daqui a quatro meses? Além do mais, eu vou sofrer por mais 20 ou 22 semanas sabendo que tenho uma criança quase morta aqui dentro de mim...
– Como é mesmo o nome que você escolheu para o menino?
– Como o senhor sabe que é menino?
– Dá para ver perfeitamente nessa ultra-sonografia. Mas, me diga, como ele vai se chamar?
– Er... Se fosse menina, eu ia chamar de Júlia. Se fosse menino, César.
– Como assim “ia” chamar?
– Bem, se eu pudesse, não teria essa criança.
– Bom, já que você quer tanto, você pode fazer seguinte: entrar com um processo judicial pedindo a interrupção da gravidez. Existem casos como esse que já foram aprovados e o processo até que é bem simples, em comparação com outros processos na justiça do nosso país.
– Sério?!
– Sim, se você conseguir ganhar a causa, eles vão autorizar o procedimento de interrupção da gravidez, e tirar a criança aí de dentro.
– Mas, e depois, o que eles fazem com a criança?
– Depois jogam fora. Afinal de contas ainda não é uma pessoa e pode ser jogada fora.
– Mas jogam no lixo?
– Sim e não. Mas na prática é sim, mais ou menos isso.
– Mas eu queria enterrar meu filho. Não quero que ele vá para o lixo do hospital.
– Dificilmente eles vão te entregar a criança. Você pode até conseguir que te entreguem, mas não vai conseguir enterrá-lo, porque nem certidão de nascimento ele vai ter.
– Mas eles não podem jogar fora uma criança assim! Poderiam, pelo menos, doar os órgãos para outra criança recém-nascida.
– A anencefalia não impede a formação dos órgãos, mas, para poder doar os órgãos, eles precisam estar formados. Se ele ainda nem chegou na metade da gestação, não será possível doar os órgãos. Na verdade, não vai ter utilidade nenhuma para outra criança...
– Entendi... Bom, não quero tomar mais o seu tempo doutor. Sua próxima paciente já deve estar esperando há muito tempo. Eu te agradeço pela conversa e por me atender num dia tão atribulado.
– Disponha. Pense nisso tudo e tome sua decisão. Pense no César também.
Despediram-se, e Fabiana foi para casa pensando no que o Dr. Queiroz havia falado.
Alguns dias depois, telefonou para marcar uma outra consulta para fevereiro.
O menino nasceu no dia 22 de abril do ano seguinte. Foi batizado no hospital com o nome de César Silva e lá mesmo recebeu sua certidão de nascimento.
Viveu apenas um dia. Pouco tempo. No entanto, foi o suficiente para ele cumprir sua missão: sua mãe autorizou a doação dos órgãos logo em seguida, e seu coração continua batendo no peito do pequeno Lucas, que aguardava ansiosamente por uma doação.
Fabiana não sabia o que fazer com o envelope que estava em suas mãos. Olhou mais uma vez o resultado do exame, ainda lacrado.
Antes de abrir, lembrou-se outra vez da cara que o namorado havia feito quando descobriu que ela estava grávida. Ele parecia estar vendo um fantasma. Ficou tão chocado com a novidade, que se despediu às pressas e nunca mais atendeu nem um telefonema. O maldito, pensava, tinha o tal “bina” no celular.
Uma vez, ligou de um orelhão para ele, e, quando ele reparou que era ela quem estava do outro lado da linha, desligou o celular e mandou a operadora trocar seu número. Foi a maior decepção da sua vida ter confiado tanto num homem e ele fazer esse papel de moleque.
Depois de afastar as lembranças do namorado, Fabiana resolveu abrir o envelope, para ficar mais calma. Com certeza, tudo devia estar bem com o pequeno bebê, que já estava com 18 semanas.
Sem muita pressa, abriu o envelope e foi direto ao ponto do laudo que interessava.
Naquele instante, era ela que parecia estar vendo um fantasma. Um não, uma legião tenebrosa de fantasmas assustadores trazendo consigo as palavras “feto anencéfalo”.
Ficou repetindo consigo, em estado de choque: “feto anencéfalo”, “feto anencéfalo”, “feto anencéfalo”... E desabou num pranto.
Não era possível! Devia haver um erro! Havia de estar errado! O neném tinha que ser lindo, gorducho, rosado, alegre, saudável, feliz... Não anencéfalo!
Correu até o banheiro, abriu o armário, pegou o calmante fitoterápico e tomou uns comprimidos. Sua sorte era ser bastante sensível ao maracujá. Em meia hora já estava calma novamente. Muito triste, mas calma.
Pegou o telefone e discou para o consultório do médico.
– Consultório do Dr. Queiroz...
– Por favor, aqui é Fabiana Silva, gostaria de saber se o Dr. Queiroz pode me atender hoje.
– Hoje? Ele só tem agora consulta para fevereiro do ano que vem.
– Fevereiro? Mas ainda estamos em dezembro!
– Isso mesmo, fevereiro. Você quer marcar?
– Olha só, minha querida, isso é uma emergência! Eu preciso falar com ele hoje, nem que seja num encaixe de dez minutos entre duas consultas!
– Humpf (detesto quando me chamam de “minha querida”)... Vou falar com ele assim que terminar essa consulta. Me dê seu telefone.
– O telefone é 28... Ah, e tem também o celular, 82...
Passaram-se 20 minutos – os mais longos de sua vida – e, felizmente, a secretária telefonou dizendo que ela poderia ser atendida em duas horas.
Fabiana não esperou nem um minuto, partiu para o ponto de ônibus para esperar as duas horas lá no consultório do Dr. Queiroz.
Foi sua sorte. O trânsito estava terrível desde o túnel Santa Bárbara até a rua Pinheiro Machado. Havia um caminhão enguiçado bem em frente ao Palácio Guanabara. O tráfego estava em meia pista. Se tivesse se demorado mais um pouco em casa, não iria chegar a tempo no consultório, que ficava na Voluntários da Pátria.
Chegou ofegante ao consultório e entregou a carteirinha do plano de saúde para a secretária, que ainda estava de mau humor.
Nem teve tempo de sentar e abrir uma revista e o Dr. Queiroz já estava saindo de seu consultório. Ele disse para que o aguardasse lá dentro enquanto ia buscar um FAX na recepção.
– Como está, Fabiana? – Perguntou o Dr. Queiroz, ao voltar para a sala. – Fez os exames que eu pedi?
– Pois é doutor, fiz e já tenho os resultados, gostaria que o senhor lesse, por favor.
O médico leu tudo sem esboçar nenhuma emoção. Só os olhos se mexiam no seu rosto. Nem uma expressão de susto, de tristeza, de surpresa... de nada!
Depois de terminar, ele deixou os papéis em cima da mesa, encostou-se na cadeira e deixou escapar um longo e sonoro suspiro.
Ele sabia que ela tinha cultura suficiente para entender o que estava escrito no laudo e foi diretamente ao assunto.
– Fabiana, você pode fazer outro exame, mas o que eu estou vendo aqui não deixa nenhuma sombra de dúvida que seu bebê é anencéfalo. Lamento.
– É, eu sei...
– Infelizmente, não há o que fazer para que essa criança consiga sobreviver, mas também não é possível precisar quanto tempo ela ficará viva depois de nascer.
– Eu posso interromper a gravidez?
– Abortar? Não aconselho.
– Não, não quero abortar, queria, “tipo”... fazer um parto para antecipar o nascimento.
– Sim, o que você quer é abortar.
– Não, já disse que não quero abortar... Ou melhor, quero abortar sim, afinal é o meu corpo, eu tenho que ter direito de decidir se eu quero ou não carregar uma criança morta na minha barriga. A minha cabeça já está entrando em parafuso por causa desse assunto.
– Veja bem, Fabiana, ele não está morto ainda. Se nós o tirarmos daí hoje, aí sim ele vai morrer instantaneamente. Ele pode até não ter atividade cerebral, mas vai sobreviver um tempo, apesar de pequeno, depois que nascer. Pense que você o está servindo para ele viva esses poucos meses no seu ventre.
– Mas qual é a diferença de morrer hoje ou morrer daqui a quatro meses? Além do mais, eu vou sofrer por mais 20 ou 22 semanas sabendo que tenho uma criança quase morta aqui dentro de mim...
– Como é mesmo o nome que você escolheu para o menino?
– Como o senhor sabe que é menino?
– Dá para ver perfeitamente nessa ultra-sonografia. Mas, me diga, como ele vai se chamar?
– Er... Se fosse menina, eu ia chamar de Júlia. Se fosse menino, César.
– Como assim “ia” chamar?
– Bem, se eu pudesse, não teria essa criança.
– Bom, já que você quer tanto, você pode fazer seguinte: entrar com um processo judicial pedindo a interrupção da gravidez. Existem casos como esse que já foram aprovados e o processo até que é bem simples, em comparação com outros processos na justiça do nosso país.
– Sério?!
– Sim, se você conseguir ganhar a causa, eles vão autorizar o procedimento de interrupção da gravidez, e tirar a criança aí de dentro.
– Mas, e depois, o que eles fazem com a criança?
– Depois jogam fora. Afinal de contas ainda não é uma pessoa e pode ser jogada fora.
– Mas jogam no lixo?
– Sim e não. Mas na prática é sim, mais ou menos isso.
– Mas eu queria enterrar meu filho. Não quero que ele vá para o lixo do hospital.
– Dificilmente eles vão te entregar a criança. Você pode até conseguir que te entreguem, mas não vai conseguir enterrá-lo, porque nem certidão de nascimento ele vai ter.
– Mas eles não podem jogar fora uma criança assim! Poderiam, pelo menos, doar os órgãos para outra criança recém-nascida.
– A anencefalia não impede a formação dos órgãos, mas, para poder doar os órgãos, eles precisam estar formados. Se ele ainda nem chegou na metade da gestação, não será possível doar os órgãos. Na verdade, não vai ter utilidade nenhuma para outra criança...
– Entendi... Bom, não quero tomar mais o seu tempo doutor. Sua próxima paciente já deve estar esperando há muito tempo. Eu te agradeço pela conversa e por me atender num dia tão atribulado.
– Disponha. Pense nisso tudo e tome sua decisão. Pense no César também.
Despediram-se, e Fabiana foi para casa pensando no que o Dr. Queiroz havia falado.
Alguns dias depois, telefonou para marcar uma outra consulta para fevereiro.
O menino nasceu no dia 22 de abril do ano seguinte. Foi batizado no hospital com o nome de César Silva e lá mesmo recebeu sua certidão de nascimento.
Viveu apenas um dia. Pouco tempo. No entanto, foi o suficiente para ele cumprir sua missão: sua mãe autorizou a doação dos órgãos logo em seguida, e seu coração continua batendo no peito do pequeno Lucas, que aguardava ansiosamente por uma doação.
Assinar:
Postagens (Atom)